sábado, 16 de março de 2013

O Som ao Redor


Imagens de grades, portões e muros em volta das residências são comuns em qualquer grande cidade brasileira. Representando um sistema individualista, em que as pessoas têm que proteger a si e - principalmente - a seus bens, elas estão tão onipresentes no nosso dia-a-dia que já são tratadas como naturais. Em busca de proteção, esses mecanismos transformam nossos lares em prisões particulares e servem para saciar nossa obsessão por segurança. Mas, acima de tudo, eles contribuem para isolar as pessoas, transformando comunidades e vizinhanças em um conjunto de indivíduos estranhos uns aos outros.

As grades estão também onipresentes em O Som ao Redor, primeiro longa-metragem de ficção do diretor Kleber Mendonça Filho. O filme faz um retrato fiel e complexo das relações humanas em uma sociedade profundamente individualista, onde não há praticamente nenhuma noção de comunidade e até os vizinhos são enxergados como concorrentes ou competidores. E vai além: traçando um paralelo com nosso passado, onde a divisão de classes rigidamente estabelecida ditava o papel de cada cidadão, Mendonça conclui que nossa paranoia por segurança tem relação direta com a desigualdade e a estratificação social, resquícios de um processo histórico mal-sucedido.

O filme se passa em uma vizinhança do Recife, repleta de prédios e com apenas algumas casas esparsas que - como ficamos sabendo durante a narrativa - logo serão demolidas para abrir espaço para novos arranha-céus. Apresentando vários personagens que representam as classes alta, média e baixa de nossa sociedade, o filme se concentra em particularmente dois: João (Gustavo Jahn), que divide o dia entre o trabalho como corretor imobiliário da família - seu avô, Francisco (W. J. Solha) é o dono dos condomínios da vizinhança - e seu romance com Sofia (Irma Brown); e Bia (Maeve Jinkings), uma dona de casa de classe média, casada e com dois filhos, que vem tendo problemas para dormir graças ao cachorro da casa ao lado. O ponto de partida da narrativa é a contratação de três seguranças liderados por Clodoaldo (Irandhir Santos) para fazer uma ronda no quarteirão e aumentar a proteção de seus moradores.

João é retratado como um bom sujeito que, apesar de sua vida abastada e tranquila, demonstra possuir algum tipo de consciência - ele é o único que, em uma reunião de condomínio, opõe-se à demissão do porteiro que fora flagrado dormindo em serviço, mas que está próximo da aposentadoria. Ainda assim, ele se revela um individuo conformado, incapaz de mover um dedo para mudar uma situação em que se encontra confortável. Vindo de uma família tradicional - seu avô, além de dono dos prédios do bairro também possui um antigo engenho -, João sabe que é privilegiado e, como reflexo dessa consciência, é o único a tratar os empregados com um mínimo de educação ou carinho. O brilhante roteiro, aliás, ilustra nossa desigualdade histórica através da empregada do rapaz: Maria (Mauricéia Conceição), negra e pobre, trabalhou a vida inteira para a família, com seus serviços sendo herdados de pai para filho e que, ao se aposentar, é substituída pela filha - e qualquer semelhança com nosso passado escravocrata não é mera coincidência.



Já Bia é a personificação de uma classe média individualista e em busca de prazeres efêmeros. Vivendo solitária dentro de sua própria família - ela mal conversa com o marido ou com os filhos (chegando a ser praticamente expulsa de sua própria sala pela professora de chinês dos meninos por "atrapalhar sua concentração") - Bia tenta encontrar felicidade na maconha e no consumismo (é curioso como seu principal momento de prazer é com uma máquina de lavar). Demonstrando nossa incapacidade de comunicação, mesmo com aqueles mais próximos de nós, seu drama envolvendo o cachorro barulhento da vizinha poderia ser resolvido com uma simples conversa, mas a natureza sádica e competitiva da individualidade não permite.

No fim, tudo volta à questão da insegurança e da defesa do patrimônio, mais importante do que o bem-estar coletivo - a forma como os vigilantes compartilham fotos e vídeos de pessoas mortas violentamente revelam total insensibilidade e desprezo pela vida humana. As relação sociais resumem-se ao que as pessoas possuem, seja uma televisão maior que a do vizinho, seja um apartamento com uma bela sacada. Inicialmente contratados como seguranças comunitários, aos poucos os homens de Clodoaldo vão tomando conhecimento verdadeiro daquele microcosmo. Sabem, por exemplo, que não devem se meter com o encrenqueiro Dinho (Yuri Holanda), também neto do poderoso Francisco. E, conforme a narrativa vai chegando ao fim, eles deixam de servir à comunidade e se transformam em seguranças particulares daquela família. Uma mudança salientada até mesmo pelos títulos de cada ato da narrativa ("Cães de Guarda", "Guardas Noturnos" e "Guarda-Costas").

Filmando com a classe de um veterano - o que pode ser explicado por sua experiência anterior como crítico e diretor de curta-metragens -, Kleber Mendonça Filho cria uma obra densa, mas com momentos de humor e sensibilidade. Ora apostando em tornar sua temática mais evidente ("eu tenho recebido a minha Veja fora do plástico"), ora explorando situações e planos mais simbólicos, como nas sequências de pesadelo, O Som ao Redor revela-se um filme ambicioso, repleto de detalhes e que tende a ficar melhor sempre que revisto.

O Som ao Redor (Brasil, 2013). Dirigido por Kleber Mendonça Filho. Com Gustavo Jahn, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, W. J. Solha, Irma Brown, Lula Terra, Yuri Holanda, Clébia Souza, Albert Tenório, Nivaldo Nascimento, Felipe Bandeira, Clara Pinheiro de Oliveira, Sebastião Formiga e Mauricéia Conceição.



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