sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Lincoln


Os norte-americanos possuem, entre várias outras características marcantes, um orgulho de sua história e de seus principais personagens que muitas vezes beira ao fanatismo. É o caso, por exemplo, de Abraham Lincoln, o 16° presidente daquele país. Foi durante seu mandato que ocorreu a sangrenta guerra de secessão, opondo o sul escravista e o norte abolicionista, conflito só se encerrou após o fim da escravidão. A morte trágica do presidente, assassinado em um teatro meses depois de aprovada a medida, ajudou a consolidar ainda mais a sua história como a de um mártir da liberdade e da igualdade.

Durante anos o diretor Steven Spielberg tentou transformar em filme a história de Lincoln. Diretor que ajudou a revolucionar o cinema norte-americano nos anos 1970, Spielberg sempre foi conhecido pelos exageros nos filmes dramáticos, carregando a mão na pieguice e no sentimentalismo até mesmo em seus trabalhos mais eficientes (basta assistir aos finais de A Lista de Schindler e O Resgate do Soldado Ryan para ver dois exemplos). Ao adaptar a biografia do ex-presidente, podia-se esperar mais um espetáculo choroso e forçado vindo do diretor, assim como em trabalhos que tratavam do mesmo tema, os dramáticos - até demais - A Cor Púrpura e Amistad. Mas não é o que acontece. Pelo contrário: Lincoln não é apenas um filme inteligente e muito bem planejado, como também é o melhor trabalho de Spielberg desde o ótimo Munique.

Muito dessa auto-disciplina do diretor é fruto do brilhante roteiro de Tony Kushner. Concentrando-se exclusivamente nos dias finais da guerra civil, o filme acompanha as negociações para a aprovação da 13ª emenda à constituição americana, que põe fim de vez à escravidão. Detalhista ao estremo, Kushner nos coloca a par de todos os percalços políticos pelos quais passam o presidente e seus apoiadores: desde as tentativas para convencer as correntes radicais e conservadoras do partido republicano (o mesmo do presidente) até a negociação com os opositores democratas, com direito a ofertas de cargos públicos, lobby ou mesmo subornos. Tudo isso ao mesmo tempo em que retrata a habilidade retórica do presidente: representado como uma figura profundamente carismática, como um contador de histórias exímio, e como um político corajoso, Lincoln cria um retrato bastante positivo do presidente, mas sem se transformar em uma hagiografia.



Trabalhando com um roteiro que investe mais na inteligência do que no sentimento, Spielberg tem a oportunidade de demonstrar seu talento como contador de histórias. Apesar da complexidade das negociações políticas e dos vários personagens que passam pela tela, em nenhum momento o espectador fica confuso ou perdido, graças à habilidade narrativa do cineasta e de sua equipe. Reparem, por exemplo, na perfeita mise-en-scène do momento em que são introduzidos os republicanos radicais e seu líder, Thaddeus Stevens: mostrando inicialmente apenas a argumentação de seus interlocutores, Stevens só aparece em campo quando resolve se pronunciar, atraindo a atenção dos presentes; e, então, com um corte para o contraplano e um sutil movimento da câmera finalmente o político é mostrado - e a beleza do movimento é auxiliada, também, pela iluminação perfeita do fotógrafo Janusz Kaminski, parceiro habitual do diretor. Kaminski, aliás, realiza aqui um de seus melhores trabalhos, apostando numa iluminação mínima, destacando silhuetas e mergulhando seus personagens nas sombras dos bastidores da política. Da mesma forma, a montagem de Avy Kaufman jamais faz o filme parecer cansativo: o ritmo é acelerado nas sequências que envolvem as tentativas de influenciar o voto dos congressistas, mas volta à calmaria nas situações mais tensas e intimistas.

Mas quem rouba o filme inteiramente é Daniel Day-Lewis. Beneficiado pelo roteiro inspirado, seu Lincoln consegue cativar até mesmo os inimigos e rivais, graças à eloquência e ao carisma. Seu olhar simpático e a impressão de estar sempre sorrindo ao contar suas famosas histórias escondem uma figura exausta, curvada pela idade e pelo peso do cargo que ocupa. Sua atenção aos detalhes impressiona: desde a voz cansada, passando pela entonação, pelos gestos e pelo olhar, tudo é calculado com a mínima precisão; é como se estivéssemos vendo o Lincoln de verdade. A interpretação de Lewis é o que move o filme, fazendo com que o espectador enxergue com clareza o porquê daquela figura ser tão admirada, e certamente merece todos os prêmios que vem recebendo, incluindo o seu provável terceiro Oscar de melhor ator (um feito inédito na categoria).

Mas não é apenas Day-Lewis que brilha: o Thaddeus Stevens de Tommy Lee Jones também é uma figura crucial para compreendermos a importância daquele momento histórico e suas consequências para o futuro. Mais radical do que o presidente - já que é favorável não apenas ao fim da escravidão, como também ao de qualquer tipo de discriminação -, Stevens se vê obrigado a negar alguns de seus princípios a fim de que a emenda seja aprovada; e, de certa forma, ao negá-los está contribuindo para que os negros continuem sofrendo, já que, mesmo livres, só teriam seus direitos civis garantidos dali a quase um século. Também retratado como uma figura cansada e frágil pela vida dedicada à política (algo facilmente notado pela sua dificuldade em locomoção), Stevens é talvez o elo moral mais importante o filme, e a atuação de Jones é sutil na medida certa. Da mesma forma, Sally Field dá graça e emociona como a primeira-dama Mary Todd Lincoln, protagonizando alguns dos momentos mais tocantes do filme. Aliás, todo o elenco de Lincoln é espetacular, contando com atores talentosos como Joseph Gordon-Levitt, Hal Holbrook, David Strathairn, John Hawkes, Jackie Earle Haley, Michael Stuhlbarg, James Spader, entre outros.

Mesmo tropeçando no final - e Spielberg mais uma vez retoma o seu sentimentalismo piegas ao retratar desnecessariamente a morte do presidente -, Lincoln é um filme muito bem realizado tanto tecnicamente quanto em termos narrativos. E o importante momento histórico que retrata não só encontra eco com a atual situação da política americana (quando um presidente negro acaba de tomar posse para seu segundo mandato), mas também representa a volta por cima de um diretor que vinha de uma série de trabalhos irregulares.

Lincoln (EUA, 2012). Dirigido por Steven Spielberg. Com Daniel Day-Lewis, Sally Field, Tommy Lee Jones, David Strathairn, Joseph Gordon-Levitt, Hal Holbrook, David Costabile, John Hawkes, James Spader, Tim Blake Nelson, Jackie Earle Haley, Bruce McGill, Joseph Cross, Jared Harris, Lee Pace, Peter McRobbie, Gulliver McGrath, Gloria Reuben, Michael Stuhlbarg, Jeremy Strong, Boris McGiver e Walton Goggins. 


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