quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O Mestre


"Se você descobrir como viver sem servir a um mestre, qualquer mestre, então conte para o resto de nós. Porque você seria a primeira pessoa na história do mundo."
(Lancaster Dodd, O Mestre)

Dizer que O Mestre é apenas um filme sobre a origem da Cientologia é um reducionismo que não faz jus à obra. Há nele referências ao culto - chamado aqui de 'A Causa' -, mas também a diversos outros movimentos liderados por figuras cativantes que misturam espiritualismo, frases de auto-ajuda, vidas passadas, pseudociência e técnicas de sugestão psicológica. Mas, acima de tudo, o filme é um estudo de personagens, da natureza humana, dos nossos instintos animais e da forma vã como tentamos controlá-los.

Freddie Quell (Joaquin Phoenix) é um sujeito destruído pela guerra e alcoólatra a ponto de esvaziar o combustível de uma bomba para bebê-lo. Inconsequente, toma atitudes ríspidas e não parece se identificar com nenhum lugar em que permanece. Para ele a rotina é exaustiva, a vida é uma viagem eterna, as mudanças precisam ser constantes. Interpretado de forma colossal por Phoenix, Freddie é um sujeito curvado, de expressões animalescas e temperamento inconsistente. A comparação com a vida selvagem é válida - e feita durante todo o filme: ele é um indivíduo que preza pela liberdade, pelas atitudes inesperadas, pelo comportamento ora agressivamente dócil, ora explosivo.

Já Lancaster Dodd (Philip Seymour Hoffman) é o controle em pessoa. Afável, calculadamente simpático e carismático, usa o riso para se aproximar de seus seguidores. Sujeito inteligente, aposta na lábia infalível e em seu conhecimento da psique humana para lançar o que ele chama de teorias científicas mas que no fundo sabe se tratar de meras manipulações e especulações filosóficas. A atuação de Hoffman é hipnotizante na maneira como diz cada frase, calma e pausadamente, fazendo com que percebamos facilmente a capacidade de influência do sujeito; ou quando nos faz identificar sua irritação por trás da máscara do líder sábio e bem humorado. Porque o mestre do título também tem momentos de explosão animal e de desejo que ele falha em controlar, principalmente ao ser questionado sobre seus métodos e suas teorias.

É na relação entre esses dois personagens que o filme ganha força e magnitude. Dodd enxerga em Freddie uma cobaia para seus experimentos mas, ao mesmo tempo, há uma mútua dependência de ambas as partes: o mestre enxerga em seu discípulo a indisciplina e o desafio de controlar seus instintos animalescos; enquanto que esse último vê no líder uma rara chance de ser entendido e aceito, seguindo cegamente os ensinamentos dele, mesmo sem compreendê-los de todo. A dicotomia e as diferenças entre essas duas figuras são frisadas durante toda a obra, assim como a tentativa de controle de um sobre o outro.



Nesse embate entre a fúria animalesca e o controle moral e racional, chama a atenção também a esposa de Lancaster Dodd, Peggy, interpretada com dedicação por uma excelente Amy Adams. Talvez a personagem mais entregue ao culto, Peggy surge como a encarnação do fanatismo religioso, da paixão cega a ideias e da intolerância a qualquer tipo de questionamento sobre sua fé. Sua obsessão pela Causa e pelo esposo fazem com que tente protegê-lo ao máximo, repreendendo-o ao ceder a seus 'instintos' e tentando - sem sucesso - fazer com que se afaste de Freddie.

Paul Thomas Anderson filma todos esses detalhados personagens com um extremo cuidado estético e simbólico. Seu filme é profundamente reflexivo, com cada plano, cada sequência, cada diálogo trabalhados de forma sublime e evocativa. A narrativa não linear, repleta de flashbacks e planos puramente simbólicos, assim como a trilha sonora ora bela, ora dissonante de Johnny Greenwood, ajudam a construir uma história que, assim como seu protagonista, revela-se fragmentada. Há instantes que são puramente geniais, como quando vemos um plano de Dodd no elevador cercado por seus seguidores - onde a iluminação e o posicionamento dos atores em cena dão exatamente a impressão de que todos servem como escudo contra as críticas que ele recebe ou que virá receber. Outros momentos ajudam a mostrar as diferenças de temperamento e filosofia dos dois principais personagens: seja quando são presos - e Freddie mais uma vez tem um ataque de fúria, enquanto Dodd permanece calmo -, seja na belíssima sequência em que partem para andar de moto no deserto - e se o líder do culto permite-se um raro momento de inconsequência, mas logo voltando seguro ao ponto de origem, o protagonista usa aquele instante para mais uma vez fugir, reafirmando-se como um sujeito que anseia por liberdade.

No fundo, ao contrário do que propõe o mestre Lancaster Dodd, somos todos animais que tentam domesticar seus instintos através explicações metafísicas e filosóficas autoimpostas - que falham na quase totalidade dos casos. E Paul Thomas Anderson segue, filme após filme, se firmando como um dos cineastas mais brilhantes surgido nos Estados Unidos nos últimos 30 anos. Ele é o verdadeiro mestre aqui.

The Master (EUA, 2012). Dirigido por Paul Thomas Anderson. Com Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams, Laura Dern, Jesse Plemons, Ambyr Childers, Rami Malek, Madisen Beaty e Amy Ferguson.


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