sábado, 2 de fevereiro de 2013

Os Miseráveis


A vitória de O Discurso do Rei, e particularmente de seu diretor, Tom Hooper, no Oscar, há dois anos, foi imediatamente tratada como um dos maiores vexames da história da premiação. Não era para menos: burocrático e narrativamente ultrapassado, o longa poderia até ter se tornado uma obra mais relevante não fosse a direção equivocada do cineasta. Tentando criar um tipo de "estilo", mas sem entender como, o filme abusava de efeitos bobos e enquadramentos pouco convencionais, que chamavam mais atenção para si mesmos do que serviam para dar substância à história. Agora Hooper retorna com a adaptação do musical da Broadway Os Miseráveis (por sua vez inspirado na obra do escritor Victor Hugo), um trabalho ousado e grandioso. E mais uma vez as decisões equivocadas do diretor limitam o potencial da obra.

O filme narra a saga de Jean Valjean (Hugh Jackman), o um preso em condicional perpétua que muda de identidade e decide fazer apenas o bem depois de ser ajudado por um bondoso bispo. Perseguido pelo inspetor de polícia Javert (Russell Crowe) por estar foragido, Valjean se torna prefeito de uma cidade do interior francês, onde conhece Fantine (Anne Hathaway), uma jovem que, depois de passar por diversos infortúnios, fica gravemente enferma. Valjean então promete cuidar da filha de Fantine, Cossette (vivida por Isabelle Allen na infância e por Amanda Seyfried na vida adulta), ao mesmo tempo em que tenta escapar do incansável Javert. Ambientado nos tumultuados século XIX, o filme também tem como pano de fundo os conflitos políticos da época, levando à tela as temáticas da obra original, como a luta contra o autoritarismo e a desigualdade. Tudo isso ao som de muita cantoria: por escolha da produção, as músicas não se restringem a números isolados, mas ocupam todos os diálogos do filme.

Mesmo despertando certo estranhamento a princípio, a cantoria não atrapalha o andamento do filme, mas a experiência de assisti-lo torna-se um pouco cansativa graças às suas quase duas horas e meia de duração. A decisão de por os atores para cantar ao vivo, captando o som das canções durante as filmagens, e não em estúdio, revela-se acertada: a emoção passada pelas atuações surge genuína. A opção de Hooper em filmar os atores através de planos longos e com destaque para suas expressões potencializa as atuações mas, ao mesmo tempo, o excesso de closes é nocivo para os aspectos técnicos do filme. Com tantos planos fechados, são poucos os momentos em que a direção de arte e os figurinos cumprem seu papel - como, por exemplo, ao trazer os revolucionários vestidos sempre com as cores da bandeira francesa. Já a maquiagem é eficiente ao caracterizar a decadência física e emocional de Valjean e Fantine, mas falha no envelhecimento de alguns personagens, em particular Javert, cuja aparência permanece a mesma durante toda a história, mesmo tendo-se passado quase 30 anos desde o seu princípio.



Exatamente por causa do próprio estilo de filmar de Hooper e da temática do longa, Os Miseráveis depende em demasia de seu elenco e do desenvolvimento de seus personagens. Infelizmente, só um desses aspectos funciona e Jean Valjean e Javert se tornam os únicos seres tridimensionais da obra. Hugh Jackman apresenta aqui o melhor trabalho de sua carreira, demonstrando seu talento como cantor (ele já tem experiência na Broadway), e cria um Valjean que foge do estereótipo simples do bom samaritano ao demonstrar as dúvidas e dilemas do protagonista, seja com sua expressão triste e cansada, seja apenas com a raiva e o arrependimento no olhar. Já Javert revela-se o ser humano mais complexo, um sujeito que acredita na ordem e na obediência acima de tudo, mas que se vê perdido ao perceber que o mundo não é tão fácil de ser dividido em os bons e os maus - e apesar de Crowe ser um grande ator, o mesmo não pode ser dito de sua capacidade musical, revelando-se como um cantor ruim, algo que compromete muito seu trabalho. Já Anne Hathaway consegue fazer emocionar mesmo com pouco tempo em tela; e seu desempenho em I dreamed a dream consegue gerar empatia mesmo sem conhecermos o seu passado de Fantine (ao contrário do livro, o filme já se inicia com ela decadente, o que causa pouco impacto). O mesmo acontece com os personagens introduzidos no segundo ato: sem tempo para desenvolvê-los, o roteiro aposta em caricaturas (o revolucionário sonhador e o pragmático; a garota apaixonada que não é correspondida; a criança rebelde). O fato é que Os Miseráveis atinge o seu ápice emocional na primeira meia hora da narrativa, um problema grave para qualquer história.

Mas o problema não termina aí, já que durante toda a obra, as limitações de Tom Hooper como diretor ficam evidentes. Sem demonstrar possuir noções básicas de linguagem cinematográfica, como a função de cada plano e o posicionamento dos atores em cena, Hooper comete os mesmos vícios de filmagem já vistos em O Discurso do Rei: basicamente alternando planos inclinados, filmados com lentes grande-angulares e com os rostos dos atores nos cantos, tudo isso de forma randômica e sem função aparente. Pior: além de deixar de lado qualquer representação simbólica que se possa fazer dessas escolhas, o diretor e o fotógrafo Danny Cohen sequer parecem se preocupar com a beleza estética do longa, já que chegam a mutilar o rosto de seus atores nos planos mais fechados - cerca de 80% do longa, diga-se. Não que vez ou outra não apareça uma imagem mais bem executada e que possa trazer algum significado (como aquela que traz Valjean e uma cruz na parede), mas elas parecem mais terem acontecido acidente do que algo intencionalmente pensado pelo diretor. E sua mediocridade também aparece nos próprios números musicais, que surgem pouco inspirados, limitando-se a longas tomadas dos atores cantando em primeiro plano - o que nos faz pensar que a única diferença que Hooper enxerga entre o cinema e o teatro é que no primeiro pode-se ver os atores em closes. É difícil, portanto, imaginar que um sujeito medíocre como esse tenha um Oscar de direção em sua prateleira.

A impressão que se tem ao final é que o filme só se torna assistível graças às obras que o originaram: tanto o livro de Victor Hugo quanto sua adaptação para a Broadway; além, claro, do desempenho de seus atores. Teatral, mesmo tentando soar realista, Os Miseráveis tinha potencial de se tornar uma obra memorável, mas é atrapalhado pelas limitações evidentes de seu realizador.

Les Misérables (Reino Unido; 2012). Dirigido por Tom Hooper. Com Hugh Jackman, Russell Crowe, Anne Hathaway, Amanda Seyfried, Eddie Redmayne, Sacha Baron Cohen, Helena Bonham Carter, Aaron Tveit, Samantha Barks, Daniel Huttlestone e Isabelle Allen.




Nenhum comentário:

Postar um comentário