quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Amor


Muitos se surpreenderam quando Michael Haneke, autor de filmes controversos como Violência Gratuita, A Professora de Piano e Caché, anunciou que faria um longa sobre o amor. Como um cineasta, cuja maior característica de sua obra é o pessimismo com relação à humanidade, retrataria o mais nobre dos sentimentos? O diretor, no fim, filma uma história típica de sua filmografia: um casal de octogenários - Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) - que vê sua rotina mudada quando ela sofre um AVC e tem que ser cuidada pelo marido. O resultado surpreendeu não só pela emoção, mas pela profundidade, além de ter tornado seu diretor como o único na história a receber a Palma de Ouro por dois filmes consecutivos (o anterior foi A Fita Branca).

Não que Haneke fuja de seu estilo. Ao contrário: o diretor não faz questão de usar qualquer tipo de trucagem para amplificar sensações. Seus planos são estáticos, longos, remetendo a um simples observador da situação. Os closes, típicos de filmes que lidam com fortes emoções, são raríssimos. A trilha sonora inexiste - as únicas músicas que ouvimos são diegéticas, ou seja, fazem parte do universo da história. Se determinados momentos chave do longa nos emocionam (e muito) é porque nos identificamos e compreendemos aqueles personagens, suas situações e seus sofrimentos, e não por algum artifício melodramático imposto pela direção.

Portanto, o sucesso do filme não existiria sem as atuações fantásticas de seu casal de veteranos atores - e se ela tem sido injustamente mais lembrada do que ele nesta época de premiações é mais por causa da natureza dos papéis e não pela atuação superior. Riva se entrega completamente e transforma a degeneração física de Anne em algo bastante realista com seu olhar confuso e a incapacidade de falar ou se movimentar. Ao mesmo tempo, consegue demonstrar a irritação da personagem ao se ver presa àquela situação, como nos momentos em que, teimosa, recusa-se a comer. Por outro lado, Trintignant cria um personagem sensível, que sofre intensamente por dentro, mas evita demonstrar sua dor. Seu carinho por Anne e sua relação de confidências é o que move o filme - e quando vemos que ele perde a paciência com a esposa, sentimos de imediato o seu arrependimento. A química entre o casal, portanto, é fundamental para a emoção do filme; e isso fica claro quando Haneke contrapõe duas falas à beira da cama de Anne, uma feita por Georges e outra por Eva (Isabelle Huppert), filha do casal: enquanto ele conta histórias de sua juventude, acalmando-a, Eva a agita com uma conversa enfadonha sobre cotação imobiliária.



Mas há um terceiro personagem importante no filme de Haneke: o apartamento de Georges e Anne. Em um trabalho de direção de arte impecável, o lar do casal reflete, durante toda a história, a evolução do drama pelo qual passam os dois. Inicialmente bastante mobiliado, o apartamento vai se adaptando à doença de Anne, perdendo seus móveis e sua decoração, restando apenas os quadros nas paredes - o que Haneke faz questão de frisar em determinado momento. É igualmente essencial o detalhe das portas sempre permanecerem fechadas, o que deixa a casa com um aspecto claustrofóbico e escuro, representando também o fato de que o casal quer reservar aquela dor para si, evitando interferências externas (mesmo que de uma simples pomba). Por isso a última cena do filme é tão importante (spoilers a seguir): ao notarmos a casa totalmente aberta e iluminada, vemos que o sofrimento realmente terminou - e não é à toa que a única porta ainda fechada seja a do quarto do casal.

E essa é a grande mensagem do filme, que o liga ao resto da filmografia de Michael Haneke: o amor, mais do que qualquer outro sentimento, só é verdadeiro quando é acompanhado de sofrimento. A dedicação e o carinho de Georges são acompanhados da dor e do desespero de ver a si mesmo e à pessoa amada naquela situação. Por isso o casal se recusa e evita falar sobre o estado de Anne, já que as visitas que recebem são o único momento em que podem 'fugir' daquela realidade. Já a decisão final de Georges é complexamente dúbia (spoiler!): ao mesmo tempo em que serve para se livrar de seu fardo, seu ato denota profunda compaixão, já que termina a dor daquela a quem tudo dedicou e por quem sofreu tanto.

Uma história de amor à la Michael Haneke, mas ainda assim uma bela história de amor.

Amour (Áustria, França, Alemanha; 2012). Dirigido por Michael Haneke. Com Jean-Louis Trintignant, Emmanuelle Riva, Isabelle Huppert, Alexandre Tharaud, William Shimell, Ramón Aguirre e Rita Blanco.

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